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2023-09-19

Amor de madrinha em tempo de guerra. Ou um passado sempre presente

 
Começou a escrever cartas ao irmão ainda em «tenra» idade. Tinha 14 anos. Ele teve guia de marcha para Angola. Ela sentiu muito a sua partida. Emociona-se aos dias de hoje quando recorda esse encontro com a história. Ou o som do comboio quando chegava a Estremoz para levar uns filhos da terra rumo ao Ultramar. «Coisa horrível, ainda parece que o ouço», desabafa. Todos os dias escrevia uma carta, um postal ou aerograma a dar notícias da terra, da família, dos amigos. Ficou-lhe o jeito de animar, consolar, puxar pelo ego de quem estava lá longe, mas tão perto de ouvir uma qualquer bala a zunir aos ouvidos. Ou pior ainda...

TEXTO l Roberto Dores

   Joaquina Babau tem hoje 65 anos. Trabalha no Município de Estremoz e foi madrinha de guerra de quatro militares ali pelo início dos anos 70 do século passado. Partilhou a sua experiência durante as comemorações dos 316 anos do Regimento de Cavalaria n.º3.

   «O meu irmão recebia sempre muita correspondência minha, da minha mãe e dos tios. Tinha sempre muitas cartas para ler. Eu prometi-lhe que escrevia todos os dias, enquanto ele estivesse no Ultramar», recorda,  tendo começado a receber convites dos camaradas do irmão para ser sua madrinha.

A foto do Jornal do Exército mostra um momento em que militares portugueses liam cartas no meio do mato
 
 
   Aceitou quatro. «Fui madrinha de um em Angola, que era o Alpalhão, mas escrevia-me com outros dois. Um de Elvas e outro de Borba, que era o Lobinho. Não sei se ainda é vivo. Depois fui madrinha de um quarto militar, que esteve na Guiné com um primo meu. Ou seja, fui madrinha de dois de Estremoz», quantifica.

   E onde ia Joaquina buscar tantos temas para «segurar» as conversas com os afilhados? Sorrisos. «Com o Alpalhão usámos o estratagema de cultura geral. Ele perguntava e eu respondia. Por exemplo, uma vez perguntou-me quem era a diva do cinema. Era a Greta Garbo. Havia sempre tema», relata, assumindo que escrevia as cartas mal recebia o correio das ex-colónias. 

   «Quando iam para o mato estavam mais de 15 dias ou um mês sem dar notícias. Mas assim que a correspondência cá chegava eu respondia imediatamente», relembra, perante a consciência de estar a transmitir «amor de madrinha» em tempo de guerra. 

Joaquina Babau começou a escrever ao irmão ainda com 14 anos e seria madrinha de guerra de quatro militares até aos 16, quando a guerra colonial terminou. 

   Fala de tempos muito duros. «O que eles ali viveram foi tão mau, que o meu marido estava lá, somos casados há 43 anos e só uma vez é que falou do assunto já depois de ter bebido uns copitos», revela, lamentando a morte de um familiar na Guiné. «A família soube da notícia pela Rádio Portugal Livre. Eu era muito miúda, mas lembro-me de ter sido um irmão do meu avô que ouviu isso». 

   O Abril de 1974 aproximava-se. Agora Joaquina tinha 16 anos. «Já apresentava corpo de mulher, mas eles respeitavam-me muito. Eu sei que alguns militares  pediam fotografias de corpo inteiro às madrinhas, mas os meus pediam só fotos de rosto. Também é verdade que estava lá o meu primo com eles».

 
   Joaquina Babau perdeu o contacto com os seus quatro afilhados, mas há uns anos julgou ter conhecido a filha do Alpalhão. Não conseguiu confirmar. 
 

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